segunda-feira, 29 de junho de 2015

PELA DESCATRACALIZAÇÃO DO MUNDO

Reflexões trazidas de Curitiba ou, simplesmente, "COME AS YOU ARE"
por André Félix



Na última quinta-feira recebi um presente bastante inusitado e especial: uma garrafa de pinga barata pela metade. Chamo de inusitado pois não é comum para um ator ganhar um objeto desses, ainda mais estando em cena. Chamo de especial pela pessoa que me presenteou, sobre ela pretendo falar. 

Ela, na verdade é ele, um homem de cerca quarenta anos, anônimo, com roupas gastas e bastante gentileza, vale dizer que foi ele quem indicou aos personagens famintos a localização do "bandejão" de 2 reais. Encontrei-o na praça Rui Barbosa, em Curitiba, durante a apresentação da peça IEPE. Ele fazia parte da plateia, composta por pessoas de diferentes origens que estavam ali, sentadas nos bancos, canteiros, no chão, ou mesmo de pé. 

Para estar ali ele não precisou aprontar-se, nem vestir-se de melhor modo, nem ter nem ler a programação do festival, nem acessá-la pelo celular, nem chegar com antecedência para pegar a fila para receber o ingresso que dá acesso a outra fila, nem comprar ingresso, nem passar por um ou mais homens engravatados (curiosamente chamados seguranças), nem respeitar qualquer regulamento. Ele só precisou estar ali, pronto para ser acolhido! Acolhida, aqui, em nada se assemelha com ajuda econômica, ensino dos nobres valores, prescrição de como se deve viver, revelação da verdade sobre o mundo e o pós-mundo ou qualquer outra ação dessa natureza. Ser acolhido é ser tratado como igual, ser convidado a ser quem se é, poder pronunciar suas palavras em igual volume, não ser classificado, medido ou numerado, não ser tutelado. Ele e todos que ali estavam na praça foram acolhidos.

A essa altura posso parecer flertar com a arrogância, afinal, seríamos eu e minha trupe os protagonistas da história narrada. Não somos. Por baixo do figurino, da personagem, estava eu emocionado, encantado com o que acontecia, algo infinitamente maior que a minha existência. Ao meio-dia de uma quinta-feira, sob céu e a sombra das árvores estávamos todos lá: pessoas compartilhando uma história com outras pessoas. Sem comandos, sem fronteiras, sem juízos, sem catracas, só pessoas e uma história que fala de pessoas, num espaço sem donos, num espaço de todas as pessoas. Ali, deitado naquele chão, eu me vi em meio a uma experiência realmente democrática, uma festa em que eu era apenas um folião, entre tantos outros apenas foliões, a celebrar apenas o fato de estarmos ali para nada. Nada a fazer, a cobrar, a vender, a comprar, a produzir, a gerar, a cumprir, a atingir, a superar, a ensinar, a aprender, a ..., a...., a... 

Ali, aquele homem "invisível", marginalizado, sem valor num mundo capitalizado e higienizado, falou, foi ouvido e tratado apenas como pessoa e, sentindo-se acolhido, compartilhou tudo o que tinha: sua bebida, sua comida, sua voz e seu sorriso. 

Trouxe essa história na bagagem e tenho muito medo de perdê-la, afinal, como ele existem muitas outras pessoas entre nós, que são varridas aos milhões pelas cerdas das vassouras civilizatórias que os lançam nas latas dos bêbados, das prostitutas, dos vagabundos, dos drogados, dos grupos de risco, dos meninos de rua, dos delinquentes, dos indolentes, dos indecentes, dos depravados, dos desobedientes, dos sujos, dos feios, dos sem-futuro que fracassaram, fracassam e fracassarão ad eternum, por não se esforçarem para serem homens e mulheres de bem em um mundo com tantas oportunidades. Por isso, apenasmente por isso, eu a compartilho com você e, por via das dúvidas, a levarei para aonde quer que eu vá.

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