segunda-feira, 28 de março de 2016

IEPE na Fundação Casa

Olá, amigas e amigos! No último sábado nossa trupe juntou seus trecos e trapos para levar o espetáculo IEPE para os garotos que estão na Fundação Casa de Diadema. Os dias que antecederam o evento foram marcados pela ansiedade habitual de conhecermos novas pessoas e pelas interrogações de apresentarmos em um espaço inédito para nós, uma instituição prisional. Obviamente, cada um de nós carrega um imaginário, em grande parte comum, sobre instituições dessa natureza. Porém, era necessário deixarmos pensamentos e sentimentos no segundo plano, afinal, o sucesso de uma apresentação depende de trabalho organizado em equipe, concentração e tranquilidade. Mais importante que conjecturarmos sobre como seria, era preciso cuidar do que estava em nossas mãos. E assim o fizemos. Fomos levados para uma quadra no terceiro andar do prédio, nos aprontamos, até que os garotos subiram. Eram 44 garotos de 12 a 18 anos, uniformizados, alguns traziam cadeiras, mas a maioria sentou no chão. Posicionaram-se tranquilamente e nos observavam na expectativa comum de quem espera pelo início de uma peça da qual nada sabiam. Quando a peça começa é trabalho, atenção e esforço para estabelecermos uma conexão com a plateia. Nosso espetáculo valoriza bastante a narração olho no olho, esse contato é essencial para gente. Nos aventuramos diante daqueles garotos e fomos muito bem acolhidos. A maioria deles esteve atenta e vivenciou aquele momento conosco. A peça chegou ao fim e então nossos sentimentos e reflexões voltaram à tona. Pelo menos 15 garotos vieram nos agradecer pessoalmente e nos cercaram para ver de perto a tenda que utilizamos como coxia. Um deles ao me cumprimentar agradeceu por não termos medo de entrar ali. Muitos apertos de mãos e olhares sinceros nos foram dados em troca da história que contamos. Somos infinitamente gratos por tamanha gentileza e carinho. Muitas coisas passaram pela cabeça e pelo coração, numa confusão de sentimentos e conhecimentos que passadas 24 horas ainda despertam emoções e muitas perguntas. A maioria dos garotos eram pardos ou negros, coincidência? O educador e amigo que nos convidou acredita que boa parte dos garotos que ali estão precisam de outro tipo de ajuda, como assistência social e psicológica, será que ele tem razão? Um dos meninos, com apenas 12 anos, perdeu a mãe e já foi devolvido por outras duas famílias que o adotaram, como será que ele lida com isso? Gostaríamos muito de ter ouvido cada uma das histórias de vida deles. Saímos de lá bastante felizes, por um lado, por termos feito exatamente o que faríamos para qualquer grupo de expectadores: dividir o melhor do nosso trabalho. Nós os tratamos como iguais, pois é nisso que acreditamos e aprendemos com a arte do teatro. Por outro lado, não há como não ficarmos tristes ao tentarmos entender porque existem 44 garotos, acrescidos de tantos outros e outras milhões, que vivenciam o aprisionamento e tem a violência como um elemento constituidor de suas vidas. Não temos a pretensão de dar uma resposta definitiva a uma questão tão complexa, mas, como artistas, sentimos a necessidade de compartilhar algumas reflexões acerca do tema. Acreditamos que é necessário revisitarmos expressões corriqueiras que utilizamos para nos referir aos garotos e garotas que cometem infrações, tão comumente nós os chamamos de MARGINAIS. Lançamos mão desse termo muitas vezes tomados pela raiva e pelo medo de sermos vitimados pela violência, justo, por um instante. Contudo, nos falta o distanciamento e a postura crítica para interrogarmos: por que existe a violência? Por que as pessoas agem de forma violenta? Não é possível atribuir a esse fenômeno uma causa única, porém, é descabido ignorarmos o que a História tem para nos dizer a respeito e restringirmos nossas explicações ao âmbito da moral. NUNCA tivemos um Estado (termo utilizado para designar o governo nos âmbitos federal, estadual e municipal) acolhedor. O país sempre esteve (e está) nas mãos de elites econômicas e, consequentemente, políticas que veem o Estado como um departamento a serviço dos interesses do capital, do setor financeiro. A consequência mais brutal desse fenômeno é a gigantesca quantidade de pessoas cuja vida resume-se na luta pela sobrevivência (já perdida), enquanto uma minúscula minoria se apropria da riqueza produzida. Esse quadro naturalizou-se de tal maneira que não estranhamos ao ver uma capa de revista com o título “Como ganhar seu primeiro milhão”, pelo contrário, chamamos aqueles que acumulam quantias vultuosas de dinheiro de “bem sucedidos”, “pessoas de sucesso”. Um exemplo para sermos menos abstratos e demonstrarmos o como a exclusão social é constituidora da nossa sociedade. São Paulo e Rio de Janeiro, dois cartões postais que caracterizam a face moderna do Brasil, vivenciaram processos de urbanização, no século XIX e início do XX, fundamentados na expulsão das camadas populares das áreas centrais, em nome do progresso e da ordem. A Belle Époque, como é chamado esse período, foi bela para os membros das elites locais, não para os moradores dos cortiços, morros e malocas. Adoniram Barbosa contou essa história: “Peguemos tudo as nossas coisa e fumo pro meio da rua apreciá a demolição... E hoje nós pega páia nas grama dos jardim e pra esquecer nós cantemos assim, saudosa maloca!..” Essa história está também no filme Cidade de Deus, do cineasta Fernando Meirelles, onde é contado o nascimento de um bairro periférico criado para receber a população pobre cuja aparência e modos de vida não combinavam com os padrões europeus do novo projeto urbano. Está na Saudosa Maloca, na Cidade de Deus, no ônibus 174, na Candelária, no Carandiru, em Bangu, em Heliópolis, na esquina, nos campos, no mercado de trabalho, está debaixo do nosso nariz! Aqueles 44 garotos e outros milhões deles e delas que estão nas prisões e nas ruas são filhos e filhas de um processo de décadas e séculos de EXCLUSÃO SOCIAL. Enquanto o Estado e suas instituições forem usurpados pelo capital e seus angelicais agentes, e enquanto continuarmos acreditando na meritocracia como uma organização natural e inevitável da sociedade, precisarão existir cadeias, camburões e covas, muitas, muitas delas. O dólar, o euro, a cotação das bolsas, o parecer dos bancos, a opinião do empresariado, os consultores do consumo e os gurus da arte do bem-viver-comprar estão todos os dias nas capas das revistas, nas telas da tv, nas manchetes dos jornais. Eles são os únicos que podem dizer como está o mundo e o que querem dele. Enquanto os famintos, os pés descalços, os semi-escravos, os escravos, as pessoas em situação de rua, os empregados e empregadas desumanamente remunerados, os sem-terra, os sem-teto, os operários, os camponeses e tantos outros grupos são tratados como invisíveis. Quando aparecem são automaticamente identificados: OS MARGINAIS. É preciso pensarmos nisso, é preciso conversarmos sobre tudo isso. Conhecer aqueles garotos foi bastante especial para nós. Pensar nos que significou essa experiência foi inevitável. Compartilhar o que sentimos e pensamos foi necessário. Há muito sangue neste mundo sendo conscientemente derramado.

Um comentário:

  1. Que belo relato pessoal. Que linda experiência tiveram! Concordo temos que pensar, olhar e direcionar nossa atenção, não só como artistas, mas como humanos para os invisíveis, que são eles, que somos nós. Vida longa a Trupe!! Saudades de vocês! Um abraço!

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